domingo, 9 de novembro de 2025

Capítulo 1 do livro "O Umbuzeiro - Ohzadias de uma família baiana "

O Paraiso




Sertão da Bahia, primeiros meses de 1895. 
          Há uma légua da Vila de Sy Pó, que é mãe d’água na lingua dos kiriris, sapos e rãs, grilos e paquinhasy, exaustos da cantoria noturna escondem-se diante das primeiras insinuações da manhã; vaga-lumes apagam-se, corujas recolhem-se, e a mãe da lua se mistura ao mourão da porteira. Raposas e guaxinis procuram suas tocas. A suçuarana foi para a tocaia. Até saiu para caçar à noite, mas sem grande êxito. Está faminta, observando o filhote de veado catingueiro acompanhando sua mãe à beira do rio e o distraído peba com a cabeça fora da toca, sentindo o sol.  
          Mais um amanhecer começa a colorir o céu escuro com pinceladas de rosa claro, dourado, vermelho, roxo e azul. A aurora aos poucos dissipa a noite e faz brilhar as gotas do sereno sobre as folhas da jurubeba, cujas flores ainda preguiçosas, vão abrindo devagar. A mãe saruê carrega os filhotes, observada pela mãe dos pequenos e agitados micos. As sombras dos xique-xiques vão crescendo sobre a areia. Um galo canta no horizonte, anunciando mais um dia. Outro responde ali, outro aculá. Nestante canta a saracura-três-potes, e é interrompida pelo bemte-vi, seguido da graúna, e dali para frente à cantoria do amanhecer, saudando o novo dia: Sanhaços, cardeais, canários, papa-capins e rolinhas-fogo-apagou. O dia amanheceu. 
          Neste lindo cenário, vem descendo um homem magro, de baixa estatura, não para os padrões da época, com menos de trinta anos de idade, mas já demonstrando os primeiros sinais de calvície; pele bronzeada pelo sol de tantas andanças pelos sertões desde Porto da Folha, no Sergipe, vendendo gamelas, colheres e outros utensílios de pau. Chegou à esta Fazenda Buri pela hoje estrada velha ,  trazendo três meninas consigo: Maria Francisca, com cinco anos, Jovina, com três, e julia, com dois. As meninas mal acreditavam no que viam agora  diante de si, porque há pouco estavam com as perninhas quase inteiras afundadas na areia da subida, e o pai também com dificuldade por nao conhecer aquele lugar, se dividia em carregar todas aquelas coisas e ajudar as meninas a subir. Talvez riram  enquanto lutavam para subir, afundando e rindo do que estava acontecendo e se divertiram naquela novidade estranha e difícil, ao mesmo tempo bela e nova para eles. É que, o que para o povo daquela região era uma realidade muitas vezes difícil, aprendendo toda semana novos modos de enfrentá-la para ir à feira, para os quatro viajantes era uma incrível novidade. Afinal, andaram em locais desérticos, ermos e hostis, mas também passaram por vistas bonitas e verdejantes; atravessaram a caatinga, subiram e desceram morros; viajaram a pé ou no lombo de uma mula ou cavalo, ninguem sabe; conheceram solos rachados pelo sol, cortados como cacos de telhas espalhados no chão e os açudes secos com reses mortas, mas também descansaram nas sombras de facheiros, amburanas, angicos, catingueiras e carnaúbas, onde talvez até armaram redes e descansaram. Correram riscos de tocaias de animais e encontraram cidades de diversos tipos, com casas bonitas e grandes, outras com vilas pobres e carentes, outras até abandonadas, em que o povo migrou em busca da sobrevivência; beberam água, ora num rio, ora num açude, ora numa bica, ora a água providencial no tronco de uma barriguda, ora água nenhuma debaixo do sol castigante; ora a chuva rara, mas que quando caía, era a felicidade derramada e festejada por toda gente, por todo bicho, por toda planta. E assim seguiam, comendo por onde passavam, talvez pelo favor de uma pessoa boa, outra hora comprando, ou quem sabe até preparando em algum canto a própria comida. 
     Foram meses viajando, vendendo, negociando, ensinando, e possivelmente aquele homem levaria essa vida difícil de viajante até quando Deus quisesse. Mas ao terminarem de subir a estrada e se prepararem para a descida, o vento passou assoviando e abraçando aquele grupo, encantado com o que via. Durante alguns segundos onde nem piscavam, um joão-de-barro lhes deu boasvindas, e voltaram a si. Então o solitário pai notou as cigarras, que ja haviam começado a cantar, e os seus pés, que há horas sentiam a areia fina, aquela areia que apesar de dificultar sua subida há pouco, ao mesmo tempo era a mais macia, confortante e linda areia de praia que já tiveram notícia, e misteriosamente muito longe de qualquer praia, queriam impelir suas pernas a caminhar como Colombo diante do Paraíso. Mas os seus olhos queriam contemplá-lo, encantados. 
             Dali do alto essas quatro personagens avistaram uma planície verde; dezenas de tons de verde mesclando-se a flores, frutas, hortas, pastos de gado, e a areia. Vala-me, Deus, que areia marrlinda! Tudo emoldurado por um lindo rio brilhando, contrastando com quase tudo que conheciam. Um mundo à parte de tudo, a se perder no horizonte em direçao ao Cauanga e aos Olhos D’água, com várias casas de taipa e de adobo, espalhadas e salpicadas entre umbuzeiros, quixabeiras e cajaranas; mandacarus, juazeiros, mangueiras, ipês e cajueiros; macambiras cercavam terreiros aqui e ali, também cercas com mourões ou varas.  Notou também um povo parecido uns com os outros, o qual ele logo notou que eram todos parentes.     
            Marcolino José dos Santos era viúvo há pouco tempo e viajava de cidade em cidade com suas filhas. Naqueles olhos azuis cor do sonho vivo, trazia a esperança de quê, também não sabia, mas intensa como o calor que o cercava, clara como a areia que agora pisava, e viva como as águas do Itapicurú, que corria cantando em homenagem àquela linda manhã. 
               Além dos produtos domésticos que vendia, andava de povoado em povoado ensinando o “abecê”. Dificilmente no semiárido daquele tempo encontrava-se alguém alfabetizado. Marcolino oferecia-se como professor e demorava-se na localidade, ensinando a população e ganhando seu sustento e das meninas. Por fim, ainda carregava uma sanfona, que tocava para acalentar seu coração e de quem o ouvisse. 
           Agora, neste paraíso onde chegara, não sabemos onde descansou com suas filhas, onde ficou hospedado. Mas logo estabelecido, soube de uma festa. Imagino que correu a aprontar as meninas com roupinhas guardadas na bagagem, que talvez poderia ser uma mala, um baú ou uma trouxa. Não há como saber, nem o que tinham, nem como carregaram. Só imaginar. Meninas prontas, agora fazer a barba e se aprumar. 
             As festas daquele tempo e lugar eram rezas onde todos se encontravam. Depois da reza, festejavam com música, dança e comida. Eram festas para toda a família: Parentes e amigos colocavam a conversa em dia, riam, comiam e bebiam; jovens flertavam, viúvos se arranjavam, crianças brincavam no terreiro da casa ou comiam milho assado, cocadas, que chamavam de “modinha”, carnes assadas ou fritas na própria gordura, farofas, mungunzá, arroz doce e outras iguarias. 
                Naquela noite ou fim de tarde, Marcolino colocou sua melhor roupa, talvez muito simples, até judiada; ou quem sabe estava muito bem alinhado. Bem vestido ou não, de certo perfumado até a alma, porque nordestino que se preze pode andar de precata e cobó, mas é cheiroso que só a peste, ainda que a marca xodó do nordeste (eu sei que você sabe) só viesse em 1932, existiam outros perfumes e águas de cheiro, e se faltasse, a natureza dava alfazema e velande. 
                Já adaptado ao ambiente, se apresentando aqui e ali com a simpatia peculiar de um viajante que vive de vender e ensinar, e após fazer algumas amizades, seus olhos encontraram Constância Maria, a quem a família chamava Tância. Recém viúva como ele, o marido havia morrido com menos de dois anos de casamento. 
             Era filha de José Antonio, cujo pai, Gaspar, dono e toda aquela terra, havia morrido há vinte e cinco anos e a fazenda dividida entre onze de seus doze filhos. É que muito antes, uma das filhas, a Senhorinha Joaninha, ao casar com o primo Quinquim, já recebera sua parte, do próprio pai, a Fazenda do Fundão, ali vizinha do Buri. Fazenda esta de menor tamanho, mas que prosperou muito nas mãos de Quinquim (José Joaquim de Sant’Anna), sobrepujando aos cunhados.
          Então ali estava, diante dos olhos de Marcolino, Tância, filha de José Antonio e Luzia Francisca. Guarde os nomes, logo mais eles voltam para uma linda e surpreendente história. 
               Marcolino olhou para as filhas e disse algo do tipo: “Ô essas miniiina! Pergunte ali à s’adona se ela aceita ser mainha de vocês”. 
              Golpe baixo à parte (pois imagine uma mulher em 1895 olhar para três crianças e ouvir uma frase dessa sem se comover), deu certo; ela aceitou, e se casaram em menos de dois meses, em 05 de Maio de 1895. 
              Constância nasceu em 12 de Agosto de 1871, era viuva aos 22 anos incompletos de idade, de Sergio Marques de Sant’Anna desde 31 de Julho de 1893 e não tiveram filhos. 
           Sergio era filho de José dos Reis, irmão de José Antonio, portanto, primo de Constância em primeiro grau. José dos Reis era conhecido como Zezé da Pedra. Tinha este apelido porque, dizem, era teimoso. Quando resolvia que uma coisa era coisa, era essa coisa e pronto. Então seus irmãos e sobrinhos brincavam dizendo: “Quando Zezé diz que pau é pedra, é pedra!” 
              Voltando ao casamento de Constância e Marcolino, as pessoas perguntavam a Ioiô e Sinhazinha, respectivamente José Antonio e Luzia Francisca, como arrumariam marido para dez filhas. Pois bem, uma não se casou, a gêmea Mariana, mas Tância casou-se duas vezes e agora assumiu a maternidade de Maria Francisca, Jovina e Julia, criando-as com todo zelo de uma mãe que se preze. E com Marcolino teve mais doze filhos. Calma! Isso é coisa para daqui há alguns capítulos. Por hora, ficamos com o casal e as três meninas, nesta Terra encantada, onde as rodas dos carros de boi cantavam a sinfonia do sertão; aquele um trazia palha, e por estar mais leve e com as rodas mais livres, rangia mais suave; aquel’outro subia carregado de palma para o gado, trazia um barúi choroso e chêu de sofrência; já aquel’aculá, carregando mandioca pra casa de farinha, chegava a gemer compriiiido uma mistura de agunia e fastio. Logo além, o galope do cavalo trazia o vaqueiro cantando o marrlindo aboio da sua alma, seguido do contraponto dos mugidos da boiada que o seguia; ao longe a algazarra das crianças pequenas brincando livres nos terreiros, outras, maiores, não muito distantes, mesmo novinhas, já estavam puxando o cabo da enxada desde que o sol acordou, para ajudar os pais na roça feito gente grande. Aliás, viravam gente grande ainda criança. Distante, na beira do rio, bem como na nascente da Mãe D’água e na lagoa dos índios, o côro das mulheres lavando roupas. 
          Mas qual a história desta família que Marcolino encontrou? Quem é esta gente que o recebeu com carinho e deu a ele uma nova história de felicidade e paz? Que lugar tão lindo foi esse que ele e suas filhas não viram em meses de caminhada? Venha cá, chegue! Vamos voltar mais de cem anos antes da chegada destes visitantes e vou te contar tudo desde o começo, quando terminarmos essa prosa de volta ao presente, você também vai querer se juntar a esta família.

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A você desta família Reis, Gama, Santana, Marques e etc., do Buri...
Muitos personagens dos capítulos seguintes deste livro são seus bisavós, seus avós, seus pais.
E eles podem estar ou não, perpetuados neste livro. Depende de você me enviar este retalho de história.
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9. Hoje a atual estrada do Buri corta o povoado ligando-o ao Bairro Treze de Maio e por outro lado levando até além do Cauanga. É asfaltada desde 09 de outubro de 2009, graças a um trabalho de esforço da nossa saudosa prima Raimunda Rodrigues, filha de Elpidio de Domingos. A Estrada Velha do Buri era por trás do atual bairro do Gedeon, mais próximo ao rio. Tanto a antiga quanto a atual era de bastante areia, e era bem dificil e demorado o percurso que enfrentavam para venderem cedinho seus produtos na Feira, saindo muitas vezes ainda a noite.