Pequena era a mais alta de suas irmãs, nascera em 1906. O apelido irônico vinha de seu pai Marculino.
A mãe, Tância, fizera uma promessa que todas as filhas seriam Maria. Pequena era Maria Vitória.
Nasceram e cresceram no Camanduá.
Contava ela que ainda moça foi abordada por um homem sujo, empoeirado, rústico, que vivia viajando e vendendo coisas. Segundo ela, o homem mais feio que ela já havia conhecido.
Ele perguntou onde havia lugar para pousar.
À noite havia uma festa no Buri. Sem pavimentação ainda, as areias do povoado tornavam-no mais longe do centro de Cipó do que é hoje. Mas ele foi lá. Alguém com quem ele fez amizade o convidou.
Estava de banho tomado, terno trocado e limpo; penteado, perfumado, e ela não havia notado na sujeirada de dia, que ele tinha olhos azuis contrastando com a pele indígena; de certo, fisicamente era um caboclo descendente dos abusos das gloriosas bandeiras da coroa pelos sertões, e culturalmente vinha da maculação cultural das benignas missões jesuítas (ironias à parte, bendita seja a memória do Marquês de Pombal que extinguiu as capitanias, Aboliu a escravidão indígena e expulsou os jesuítas).
Segundo a vó Pequena contava, Maninho foi no mesmo dia, o homem mais feio e depois o mais bonito que ela conhecera até então. Dançaram, inclusive.
Ele vinha da Freguesia de Bom Jesus da Boa Esperança, hoje município de Utinga, e casando-se com Pequena. Ficou no Buri.
Na época Cipó não era emancipada, pertencia à Nova Soure, por isso muitos de nossos ancestrais cipoenses tem documentos constando Nova Soure.
Maninho e Pequena custavam a ter filhos. As outras Marias e os demais irmãos mais velhos de Pequena iam trazendo seus sobrinhos e sobrinhas à luz, e ela, a cada gestação iniciada, perdia. Por isso, amadrinhou muitos sobrinhos, primos mais novos e filhos de primos; além disso, adotou algumas crianças, entre elas, Ernesto.
Durante este tempo, em 1933, o irmão mais velho de Pequena, Sergio, devido a uma briga com seu concunhado Zé de Naninha, a ponto de os levarem ao extremo do desajuizo, mandando pirambeira abaixo todo ódio que este causou naquele, fazendo Sergio, convencido pela esposa a irem embora para terras que havia adquirido em Castelo Novo, Ilheus, deixou o Buri na madrugada de 16 de Março de 1933, deixando somente uma carta de despedida à ainda bem menina Maria Luiza, Mocinha de Senhora, melhor amiga de Alzira, pois todos os dias se encontravam para brincar. Contam que a briga foi por causa da cerca que Zé de Naninha vivia colocando para dentro do terreno de Sergio. Mas estas brigas eram só um motivo causador da muléstia entre os dois; a gota d'água foi uma história que ficará fora daqui, em respeito aos que assim pediram, não por este cabra da mizera, comedor de água, mas, para, como pediu carinhosamente uma prima, "trazer à memória o que nos dá esperança" (Lamentações de Jeremias 3.21).
No Sul da Bahia Sergio construiu seu engenho de descascar mandioca, moinho de cana, debulhadores de milho, tudo movido à água. Suas irmãs Dona Maria e Maricota, esta com seu esposo Pedro Fidelis e suas filhas Lia e Deja, desceram também.
Algum tempo depois, Pedro Fidelis, que trabalhava mangas de terrenos em fazendas da região, apresentou a Dona, seu amigo Domingos. Casaram-se e ela mandou buscar seus quatro filhos que estavam com a avó no Camanduá.
Pouco tempo depois, José Marques Sobrinho, Zim, filho mais velho de Sergio de Tância e Biquita de Maria de Chiquinho, voltava ao Buri trazendo As Boas Novas de Salvação por meio do Senhor Jesus Cristo, como Único Mediador entre nós E O Pai. Alcançou para O Senhor sua avó Tância, seu tio Zé Marques, suas tias Priquita, Dona, Caboquinha e Pequena. Voltava feliz a Ilhéus podendo dizer "Eu e minha casa serviremos ao Senhor" (Josué 24.15)
Sinhá Pequena de Tância, como suas afilhadas a chamavam, tinha uma máquina de costura manual, presente de sua mãe, que outras de suas irmãs também receberam.
O desejo de Pequena, em agradar as filhas que não teve, era grande a ponto dela começar a confeccionar bonecas de pano, as primeiras do Buri, do Camanduá, do Brejinho e demais povoados. Esta parte da história ouvi de Dora de Antonio, chorando, feliz, por abraçar um neto da madrinha que não vira mais.
As meninas até então, e também depois, brincavam com bonecas de sabugo de milho, e penteava seus cabelos às vezes rosa, às vezes ouro.
Ernesto se tornou homem feito, trabalhou na lavoura e depois construindo casas, e o casal continuava perdendo bebês, até que mais de vinte anos depois de casados vingou a primeira filha, Benaia, 1946. Um ano depois a segunda, Irondy, ou Di, minha mãe; e um Ano depois, Binoan. E não teve mais.
Seus filhos eram da idade dos netos de suas irmãs e irmãos mais velhos. Para compensar, tinha irmãos bem mais novos cujos filhos foram contemporâneos dos seus.
Um dia, quando Cipó ja estava emancipada, Maninho e Zé de Izauro, irmão de Julia de Rozendo, seu concunhado, esposo de Caboquinha, compraram um bananal em sociedade em Nova Soure e se mudaram para lá.
Ernesto já havia seguido sua vida.
Pequena e Maninho moraram por pouco tempo em Nova Soure.
Lá no Sul da Bahia, Zim casara com a prima Deja de Maricota em Rio do Braço e pouco tempo depois estava em São Paulo, trabalhando nas Indústrias Matarazzo. Após um ano, em 1944, mandou dinheiro para que o encontrassem a esposa, filha, cunhada e sogra, de navio, de Ilhéus a Santos (o sogro chegou depois), e agora estavam estabelecidos numa região de olarias chamada Taboão, na cidade vizinha de São Bernardo do Campo.
É que antes de mandar buscar a esposa, já congregava na Assembleia de Deus de São Caetano e foi designado para assumir uma igreja ainda nascendo, no Taboão.
Após chegar, vieram seus irmãos Izaura, Maria, Ilda, Francisco, João, Alzira, Odete e Betinha, e posteriormente seus pais.
Algum tempo depois chegavam Dona, Domingos e os filhos.
Então agora os parentes em São Bernardo, davam notícias a Pequena e Maninho, dizendo que estavam num bom lugar, cheio de trabalho nas olarias e toda uma propaganda encantadora.
Esta excelente propaganda, tão atrativa, contribuiu definitivamente para que eu não tivesse o privilégio, a honra, a alegria, de ter nascido e crescido nas areias do Buri; brincando entre cajaranas e quixabeiras, correndo às margens do Itapiciru, falando a linguagem mais doce e melodiosa do mundo. Em 1952, dezenove anos depois do malestroso fi do coisa coisada causar estrago em metade do Buri, Pequena e Maninho, mais Cabôca e Zé de Izauro, deixavam a Bania, num pau de arara, assinando minha sentença com meus pais ainda crianças, e então não nasci no Paraíso chamado Bahia de Todos os Santos.
Quando me verem escrevendo neste dialeto lindo, não julguem dizendo que é bullying. Tenham empatia com quem não teve a felicidade que vocês, meus primos, tiveram, de sair ou ficar pela própria escolha.
Então, Pequena e Maninho com seus três filhos, atravessaram as estradas ainda de terra dos sertões baianos e de Minas até chegarem em São Paulo.
No caminho, em algum lugar no meio daquelas estradas sofridas, Di, a segunda filha, com cinco anos, balançando seus pezinhos como faz toda criança quando sentada num lugar alto, deixou cair seu chinelinho da carroceria do caminhão.
Não tinha outro. Não tinham quase nada.
Maninho vendeu sua parte nas bananeiras para o cunhado para comprar as passagens para a ilusão paulista.
A menina chorou e se entristeceu durante todo o resto dos dias intermináveis da viagem.
Ao chegarem, foram, assim como toda a família já estabelecida ali, trabalhar nas olarias, fazendo os cavalos girarem nas pipas para a extração do barro, enformando e queimando tijolos e telhas.
Sergio morreu ainda naqueles anos, triste, saudoso, cheio de memórias que não voltariam.
Zim caíra nas boas graças de Alfredo Bernardo Leite, dono de grande parte da região, prosperando e adquirindo propriedades, registrando-as como Vila Marques. Não o conheci assim. Quando eu nasci ele não tinha mais.
Pedro Fidelis vendia frutas.
Domingos Brandão teve sua própria queima de tijolo. Algumas casas antigas tem tijolos com a sigla DB. Depois foi trabalhar em empresa.
Maninho trabalhou tirando areia para construção no carrego ainda limpo, também vendeu frutas e posteriormente doces.
Tanto Pedro, quanto Domingos e Maninho conseguiram a duras penas dar casa às suas esposas Maricota, Dona e Pequena.
Caboquinha e Zé de Izauro chegaram. Estabeleceram-se diante da curva do córrego que muitas vezes enchia a casa. Zé passava meses em Nova Soure e voltava; seguindo assim por muitos anos. Quando eu era criança, achava que a tia Caboquinha era a mais velha, e quando cresci, descobri que era a caçula. O sofrimento de uma vida cheia de privações a judiava. Hoje vendo seus netos conquistando tantas coisas fico feliz pela memória dela.
Zim e Dejanira tiveram dez filhos. Dentre eles, Paulo, que ainda bem jovem já namorava Di, a menina que perdeu o chinelinho, prima de sua mãe que tinha a idade dele.
Casaram-se em 1970 e tiveram três filhos: Paulo Sérgio, Ligia e eu, não necessariamente nesta ordem. Sou o do meio, mas a língua portuguesa pede para eu ser o último.
Minha mãe foi uma mulher sonhadora.
Pintava quadros, bordava e pintava tecidos; desenhava, criava vestidos e era excelente cozinheira.
Meu pai batalhava sempre com dificuldades e ela costurava de tudo. De manhã limpava a casa esmeradamente; depois de almoçarmos, ela recebia as clientes; passava a tarde fazendo moldes, riscando e cortando tecidos; virava a noite costurando.
De vez em quando, em alguma hora do dia, chorava sozinha, e ao perguntarmos, ela disfarçava, brincava, nos abraçava e contava muitas histórias sobre coisas diversas.
Eu nunca a vi desarrumada. Mesmo para ficar em casa, colocava seus vestidos de fabricação própria, se perfumava e arrumava os cabelos.
Quando perguntávamos onde ia, ela respondia perguntando se para ficar em casa tinha que ficar feia.
Não realizou seus sonhos artísticos, apenas sonhou, e cantava o Hino 126 da Harpa Cristã trabalhando e ignorando seus pesares, adorando A Deus.
Um dia, uma doença congênita começou a se manifestar. Lúpus eritematoso sistêmico.
Um mal sem cura, porém hoje com controle e tratamento. Conheço pessoas com esta enfermidade. Sofrem com dores, emagrecem às vezes, mas seguem a vida tratando. Há mais de 30 anos, porém, o pouco conhecimento médico tratou como artrose, artrite reumatoide, e quando diagnosticaram o lúpus, já estava muito avançado e ela morreu antes de completar 42 anos, em 10 de Março de 1990, no dia que completei 16 anos.
Um ano depois foi meu avô Maninho e meu avô Zé Marques (Zim).
Em 1994 a vó Pequena e o cinhado Pedro Fidelis.
Tia Dona havia partido muito antes, em 1983; Tia e bisavó Maricota, em 1986; tio Domingos tempos depois.
Já se foram seis tios paternos, um ainda criança, nos anos 40, e os demais em 1999, 2005, 2009, 2015 e meu pai neste ano. Também a tia Benaia em 2017.
A vó Dejanira, há um mês, às vésperas dos 99 anos.
Eu vi muita morte.
Hoje quando alguém parte, eu sinto a tristeza da pessoa, expresso meu carinho, mas de alguma forma meu comportamento não tem a tristeza esperada pelos que julgam. Dizem que sou frio e seco. Cada um tem sua história e os fatos que forjaram nossas emoções e reações.
Voltando à minha mãe, a vida toda ela falou do seu chinelinho. Mesmo tendo seus chinelos, sandálias, saltos altos que ela amava usar até dentro de casa, mas aquele chinelinho ficou para sempre na memória dela.
No dia que eu tive a felicidade de pisar nas areias do Buri eu senti, como já escrevi no texto com este nome, que nunca fora de outro lugar a não ser dali.
Não importa se quem teve a alegria que a ilusão dos retirantes me tirou, me diga que não sou baiano. Não é onde a gente nasce que nos faz, é a nossa origem, nosso sangue dos dois lados que é só um igual os de lá, e o que sinto na alma quando vejo uma foto ou filmagem do povoado onde minha mãe nasceu e viveu, mesmo sendo arrancada pela raiz ainda pequena.
Quando ela dizia: "Porrr que", ela era de lá.
Eu sou de lá.
E um dia, se Deus permitir assim, vou sentar diante do nascer do Sol do Buri, e descalço, pisando nas suas areias, partir feliz, entendendo o porquê de um chinelo ser tão importante...
Porque assim como o judeu, negando-se a cantar um Hino de Sião em Terra estranha, os pezinhos 34 da minha mãe não deveriam ter pisado outro lugar.
Danilo.
"Se arguma notícia das banda do norte, tem ele por sorte o gosto de ouvir; Meu Deus, meu Deus; lhe bate no peito saudade de móio, e as água nos zóio começa a cair. Ai, ai, ai, ai. (Luiz Gonzaga, "A Triste Partida")
Na foto: Buri, Cipó, Bahia, 1952: Benaia, minha tia, aos 6 anos e Irondy, minha mãe, aos 05.
Escreva também a história de seus pais ou avós, para ser lembrada.
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Há dez anos escrevo um livro contando nossas histórias e ele um dia terminará. Se haverá menção aos seus pais e avós, depende de você.
Se não se sentir seguro com a escrita, me envie do seu modo, em particular e acertaremos juntos o texto.
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