Por Cynara Menezes, publicada em ''Carta Capital'' em 06 de Maio de 2011;
As fotos e legendas são buscas minhas.
Grande Hotel de Cipó hoje, conservado por fora, abandonado por dentro
''Eram 10 da manhã de 24 de junho de 1952, véspera de São João. O então
senador Assis Chateaubriand e o escritor Guimarães Rosa, vestidos como
boiadeiros nordestinos, deixaram a galope a praça principal da pequena Caldas
de Cipó, na Bahia, à frente de centenas de cavaleiros. Iam até o campo de pouso
da cidade recepcionar o DC-3 presidencial que trazia a bordo Getúlio Vargas e o
governador do estado, Régis Pacheco. O avião aterrissou tranquilamente na pista
de terra batida cercada de cajueiros e mandacarus. Sob sol escaldante, o gaúcho
Vargas seria, pouco depois, condecorado com a Ordem do Vaqueiro e paramentado,
ele mesmo, com o gibão e o chapéu de couro de boiadeiro sertanejo.
Guimarães Rosa a cavalo em frente ao Grande Hotel de Cipó
Rosa acabara de chegar da célebre viagem a cavalo por Minas Gerais,
levando 198 cabeças de gado, que lhe inspiraria Grande Sertão: Veredas. E assim
descreveu a cena: “Em Caldas do Cipó, pude ver reunidos – espetáculo inédito,
nos anais sertanejos e creio mesmo que em qualquer parte – cerca de 600
vaqueiros autênticos dos ‘encourados’: chapéu, guarda-peito, jaleco, gibão,
calças, polainas, tudo de couro, couro de veado-mateiro, cor de suçuarana. Fui
com Assis Chateaubriand, que é o rei dos entusiastas, e tive de vestir também o
uniforme de couro e montar a cavalo (num esplêndido cavalo paraibano), formando
na ‘guarda vaqueira’ que foi ao campo de aviação receber o presidente Getúlio
Vargas. A mim coube ‘comandar’ os vaqueiros de Soure (Nova Soure, cidade vizinha)
e de Cipó”.
Aos improváveis visitantes àquelas paragens se juntariam ainda o
vice-presidente Café Filho, ministros, governadores e outras autoridades
convidados a prestigiar a inauguração de -“um dos mais belos e -luxuosos”
hotéis de todo o País, o Grande Hotel Caldas de Cipó, com 80 quartos mobiliados
“com o mais absoluto bom gosto, conforto e luxo, nada ficando a dever aos
melhores do gênero de toda a América do Sul”. Quem conta é o jornalista Odorico
Tavares (1912-1980), em reportagem de sete páginas, publicada na extinta
revista O Cruzeiro, dias depois do acontecimento histórico. A hoje esquecida
Cipó possuía então “as mais famosas águas termais do Brasil”.
A piscina do Hotel
Dona de um quiosque de sorvete ao lado das “cascatas” artificiais na
atual Praça das Águas da cidade, Maria José Silva Reis, a Menininha, de 69
anos, lembra como se fosse agora. “Eu tinha 10 anos, era magrinha, parecia um
‘belisco’. Todas nós, estudantes, de camisa de algodão branca de botão e sainha
plissada azul-marinho, estávamos em fila, esperando o presidente, que chegou
andando no meio do povo, ao lado dos cavaleiros e das charretes. Me arrepio só
de falar, olha.”
À noite, com as ruas iluminadas pelas fogueiras de São João, e as luzes
dos fogos de artifício refletindo nas águas do Rio Itapicuru, a festança
continuou, com um jantar servido por negras baianas de torço e saia brancos,
que serviram vatapá e outras iguarias – nada a ver com a região, onde se comem
carne de bode e aipim. Um baile caipira nos salões do Grande Hotel durou até a
manhã do dia seguinte.
Festas acabadas, a glória de Cipó duraria pouco. A estância termal tinha
vivido o seu auge nos anos 1930 e 1940, quando o cassino da cidade atraía os
usineiros ricos de Alagoas e de Pernambuco. Famílias inteiras vinham de todos
os cantos do País para banhar-se nas águas sulfurosas radiativas, com
propriedades terapêuticas, exploradas durante 30 anos pelo médico Genésio
Salles, especializado na França. O tratamento durava 21 dias e, reza a lenda,
até leprosos foram curados ali. Ricas em cálcio, magnésio, lítio e outras
substâncias, as águas de Cipó têm fama de ser eficazes contra problemas de pele
a reumatismo, arteriosclerose, doenças do estômago e “fraqueza genital”. “A
água só não é boa para quem tem doença do coração e para mulher grávida, que
perde o neném”, adverte a dona de casa Ilma Góes. Os efeitos curativos devem
compensar o paladar terrível da bebida, tomada aos litros por quem acredita
nela.
fotos do Balneário de Cipó na época de funcionamento entre os anos 30 e 50;
Cartão Postal;
o abandono;
Após o abandono,as décadas se passaram e as casas de banho foram engolidas pelo mato
Para não deixar de aproveitar as águas termais,
a cidade construiu cascatas na praça, uma bica onde se bebe a água termal e uma piscina;
“O hotel funcionou a pleno vapor, mesmo, só durante um ano”, conta o professor Evandro de Araújo Goes, o “sábio” do lugar, que pesquisou a história de Cipó desde a descoberta de suas águas, no século XVIII, quando se chamava Vila do Cipó e, mais tarde, Mãe d’Água do Cipó. Em 1935, transformada em estância hidromineral, passou a ser Caldas do Cipó, hoje apenas Cipó.
Cynara Menezes escreveu este texto em 2011. Hoje, ''O sábio do lugar'', como ela se referiu ao Professor Evandro de Araujo Goes, já é falecido. Nasceu em 24 de Julho de 1937 e partiu em 07 de Outubro de 2016.
Ele era a memória viva da cidade; não era meu parente, era das famílias da cidade; a minha é de uma das várias grandes fazendas de Cipó que com o tempo viraram povoados, o Buri.
Na primeira foto, o jovem Evandro Goes saltando no balneário de Cipó;
Na outra foto, já nos últimos anos.
Em 1928, o médico Salles, um aventureiro que fez a primeira
viagem de automóvel pelo Sertão de que se tem notícia, havia inaugurado o
Radium Hotel, atualmente em ruínas, com árvores crescendo pelas paredes. Bem ao
lado do Radium e seu cassino, foi erguido o Grande Hotel que, volta e meia,
seria restaurado, mas que ficou a maior parte de sua existência vazio,
despertando o saudosismo da população. O clube balneário, com seus banheiros e
piscinas termais, foi inteiramente alagado pelas cheias do Rio Itapicuru, em
1969.
Radium Hotel, onde funcionava o cassino,
que atraia gente de muito longe
O abandono dos prédios dá ao lugar um ar de cidade fantasma, em que o
tempo se esqueceu de passar. Até a década de 1980, quando foi reinaugurado com
estardalhaço, mas sem nenhum sucesso, pelo governador Antonio Carlos Magalhães,
o Grande Hotel ainda ostentava um piano de cauda e o mobiliário original.
Atualmente, só os andares térreos são ocupados, por órgãos da prefeitura. Os
demais cinco andares foram lacrados.
“Ao longo dos anos, maus cipoenses foram roubando lustres, mobília. A
suíte presidencial, onde dormiu Getúlio Vargas, foi inteiramente depredada”,
conta o professor Goes. Não sobrou nada da suíte, nem mesmo os vasos
sanitários.
Em 2009, um funcionário da prefeitura, ao tentar atear fogo a uma
colmeia de abelhas nos andares superiores, incendiou parte do telhado do hotel.
Os “bons” cipoenses choravam copiosamente diante do edifício em chamas, a quem
se apegaram nessas seis décadas como a uma joia de família. Foi preciso vir um
carro de bombeiros da vizinha Paulo Afonso para que fossem domados o fogo e a tristeza
da população, eternamente crédula de que o velho hotel voltará um dia aos
tempos áureos.
Dos dias de fausto, ficou nos habitantes da cidade um curioso sentimento
de que tudo aconteceu ontem, como se a água termal tivesse um efeito mágico
sobre a memória. Nos jardins do velho Radium, com as janelas inteiramente
lacradas, o vendedor de refrigerantes explica que as rodas de jogo no cassino,
proibidas 40 anos antes, “aconteceram até os anos 1980”. Na praça, a senhora
que vende sorvetes jura que “pouco tempo atrás” a cidade vivia lotada de
turistas, a quem os locais chamavam “banhistas”. Nos folhetos turísticos, a
Cipó dos edifícios históricos abandonados é descrita como “uma das cidades mais
belas do interior da Bahia”.
O velho aeroporto onde pousaram Vargas e sua comitiva foi substituído
por outro, inaugurado também pelo finado ACM, na década de 1990, sempre com a
esperança (ou a promessa) de ressuscitar o turismo em Cipó. Nada feito. “Às
vezes eu penso que a construção desse hotel foi ruim para nós”, especula o
vigilante do Aeroporto Bento Macedo, queixando-se da solidão do campo de pouso,
onde mora, à espera de aeronaves que nunca descem. Como o turismo ficou na
lembrança, de cada três habitantes da cidade, dois vivem do comércio de
artesanato – redes e cortinas –, que vendem inclusive em países vizinhos. Uma
via de Cipó é conhecida como “rua dos argentinos”, porque seus moradores
construíram as casas depois de sucessivas idas e vindas à terra de Cristina
Kirchner. “Eles falam um portunhol retado”, conta Bento.
“O Grande Hotel não foi um bom presente para Cipó”, concorda Noure Cruz,
professor de História e ex-secretário de Cultura do município. “O governo, dono
do hotel, não investiu em atrair turistas como fazia Genésio Salles, que
possuía até agência no Rio de Janeiro para trazer gente para cá.” Segundo Cruz,
a cidade não prosperou porque não foi construída para os próprios habitantes, e
sim para os que vinham de fora. “Os moradores ficavam à margem e os turistas
ficavam no centro. A população não se sentia bem no meio daquela elite.” Na
época do médico Salles, os banheiros termais eram separados por “doenças de
pele”, “doenças internas” e por classe social: somente um dos dez chalés de
madeira podia ser utilizado pelos “pobres”. Hoje, ao menos, as cascatas são de
uso público.
Antes da construção do Grande Hotel e da praça Juraci Magalhães, havia este casario e a praça do mercado e da feira. com as desapropriações o mercado e a feira foram para outra rua onde estão até hoje.
As casas de banho antes da construção do balneário
A tragicomédia da cidade está às vésperas de ter, quem diria, mais um
capítulo. No ano passado, por meio do PAC das Cidades Históricas, o Ministério
da Cultura assinou um convênio com a prefeitura que prevê a liberação de 35
milhões de reais para restauração do Grande Hotel, do clube balneário, do
Radium Hotel e do prédio da prefeitura, que formam um dos maiores conjuntos
urbanísticos em estilo art déco do Brasil. A ideia é transformar parte do monumental
edifício em um hotel-escola, administrado pelo Senac. A outra metade do prédio
seria utilizada pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) como campus no
Semi-Árido. Para o Radium Hotel, os planos são transformá-lo em centro de
convenções.
Vista aérea de Cipó antigamente e hoje (veja no canto esquerdo do hotel, o balneário, e na foto atual,engolido pelo mato. Esta foto atual foi tirada por nosso primo Luan Gama.
“Vamos tentar algo novo”, promete o atual secretário de Cultura e
Turismo, Dernival Santana. A 100 quilômetros dali, a estância hidromineral de
Caldas do Jorro tem ocupação turística constante, mas Santana torce o nariz
para “o turismo farofeiro” de lá. “Queremos o turismo de saúde de volta a
Cipó”, sonha. “Com a popularização dos antibióticos, as pessoas abandonaram as
águas medicinais, não foi só em Cipó, não. Mas os tempos mudaram e hoje tem um
renascimento das terapias alternativas”, aposta o prefeito Jailton Macedo.
“Nosso projeto tem tudo para dar certo, porque não basta revitalizar o prédio,
tem de movimentar a cidade. Isso vamos conseguir com a vinda dos
universitários”, diz. Às voltas com o Tribunal de Contas, Macedo precisa provar
que, ao contrário dos antecessores, não dará outro destino às verbas para
restauração e que não deixará o Grande Hotel de Cipó continuar à espera da
glória.''
NOTA
DESTE BLOG: a matéria de cynara menezes é de 2011, já se passaram outras
gestões e secretarias. em 14 de novembro de 2015 foi anunciado e apresentado do projeto de restauração do conjunto arquitetônico-urbanístico
‘art déco’ e neocolonial na Câmara
de Vereadores da cidade.
Com investimento de R$ 105 mil, o projeto contempla o prédio
tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac) em 2008, onde
funcionava o antigo Balneário.
Imagem da Maquete do Projeto de Restauração e Requalificação do Balneário de Cipó, concluído em dezembro 2016, com apoio financeiro do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, através do Edital Setorial de Patrimônio Cultural, Arquitetura e Urbanismo, executado pelo IPAC - Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. O projeto executivo facilita a captação de recursos para a tão esperada revitalização deste patrimônio da Bahia que é fundamental para a história de Cipó e de seu conjunto arquitetônico.
Outras coisas boas que estão acontecendo você pode conferir na página do ''Fórum Cipó'':
https://web.facebook.com/forumcipo
Imagem da Maquete do Projeto de Restauração e Requalificação do Balneário de Cipó, concluído em dezembro 2016, com apoio financeiro do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, através do Edital Setorial de Patrimônio Cultural, Arquitetura e Urbanismo, executado pelo IPAC - Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. O projeto executivo facilita a captação de recursos para a tão esperada revitalização deste patrimônio da Bahia que é fundamental para a história de Cipó e de seu conjunto arquitetônico.
Outras coisas boas que estão acontecendo você pode conferir na página do ''Fórum Cipó'':
https://web.facebook.com/forumcipo
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Cynara Moreira Menezes é jornalista. Foi repórter em diversos veículos de comunicação, como Folha de
S.Paulo, Veja e Carta Capital; atualmente, escreve também o Blog Socialista Morena,
que fundou em 2013.
3 comentários:
Menino vc vale ouro!!!quanto conhecimento!q Deus possa lhe ajudar cada dia mais e mais...
Oi Juciane, obrigado por comentar. Amém, que Deus lhe abençoe em dobro!
Como cipoense, agradeço pela memória e acervo que vem ressaltar a minha terra querida.
Kátia Brito
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